Projeto seleciona texto de autores cegos brasilienses para compor livro

O amor pela literatura e pela escrita é a matriz e um projeto inédito na capital federal. Com o objetivo de selecionar textos autorais para uma publicação de coletânea de contos, crônicas e poesias, a iniciativa tem o objetivo de dar visibilidade para autores cegos e de baixa visão. Apenas pessoas com deficiência visual poderão participar da seleção que segue até o dia 30. A obra final será disponibilizada, gratuitamente, em formato ebook pelas plataformas on-line de livrarias nacionais e internacionais, além do livro impresso que será distribuído nas bibliotecas e centros culturais de Brasília.


A ação faz parte da oitava edição da Mostra de Literatura ; Ocupação e Inclusão, realizada na Biblioteca Braille Dorina Nowill, em Taguatinga, e coordenada pelo agente literário Andrey do Amaral, 44 anos. Com patrocínio do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), o projeto quebra preconceitos. ;O nosso propósito é que eles sejam vistos como escritores, que tenham essa oportunidade de contar para o mundo a percepção deles;, destaca Andrey.
Aproximadamente, 300 textos foram inscritos até agora, o que surpreendeu o idealizador. ;Inicialmente, a seleção dos trabalhos estava voltada para os frequentadores da biblioteca Dorina Nowill. Com a divulgação e a adaptação durante a pandemia com o formato virtual, o projeto cresceu e saiu do Distrito Federal. Atualmente, temos textos de várias regiões do Brasil e também dos Estados Unidos;, ressalta o idealizador.
Para a estudante de letras Laís Maria Moreira de Sousa Maia, 18, a oportunidade de participar da iniciativa é como um sonho. ;É como se fosse uma história de contos de fadas real. Quando você almeja algo além de suas possibilidades e poder alcançá-lo, é um conto além da imaginação;, afirma a brasiliense que tem baixa visão, é deficiente auditiva e também foi diagnosticada com a síndrome de Asperger. Laís destaca que ela mesma se considera um milagre, e que um dia quer escrever um livro sobre esse milagre. ;Quando nasci, peguei uma bactéria e deu endocardite (infecção no revestimento interno do coração). Perdi o macular do olho, a minha audição e um pouco do meu hipocampo esquerdo. Os médicos falaram que eu não iria me desenvolver, não aprenderia a escrever, poderia até falar, mas não iria chegar nessa evolução de escrever e pensar. Eu sou um milagre;, relata.

Estudiosa e com paixão pela leitura, Laís revela que escreveu um conto sobre a percepção e vivência da vida dela. ;Minha inspiração veio de livros como Pequeno príncipe, Poliana, Peter Pan, entre outros. Eu pensei e analisei: se todos têm uma história, por que não contar a minha?;, questiona. Com o sonho de se tornar professora, ela está ansiosa com essa seleção e torce para ter seu texto publicado na coletânea.
Filha de escritor, Sheila Maria Guimarães de Sá, 55, conta que o gosto pela literatura iniciou na infância. Cega desde os 28 anos, quando teve descolamento da retina e perdeu totalmente a visão ela é uma leitora compulsiva. ;Desde pequena eu lia muito, meu pai sempre comprava livros e, quando não conseguia ler, ele lia para mim. Na adolescência eu comecei a escrever histórias, tive um poema publicado. Mas tem muito tempo que não escrevo, foi bom ter essa oportunidade;, relata. ;O livro abre um outro mundo, um universo do autor que você mergulha. Para mim, projeto representa inclusão, superação e desmistificação da deficiência em si. Não é uma cegueira ou a baixa visão que nos faz diferente. A literatura e a oportunidade de publicação nos coloca par em par;, ressalta.


Com a vivência na Biblioteca Braille Dorina Nowill, Sheila escolheu falar sobre sua vivência com os livros e o que a biblioteca significa para ela. Um espaço de inclusão, com obras literárias acessíveis que possibilitou ela viajar em outros mundos e culturas. Bibliotecária e massoterapeuta, Sheila explica que, com a dificuldade de redigir, mandou o texto em áudio para a transcrição. ;Foi uma forma que eu encontrei para poder participar e contribuir com o projeto;, afirma.O sentimento de gratidão com a Biblioteca Dorina Nowill também é tema do texto enviado pelo servidor público Leonardo Antônio Moraes Filho, 42. Ele perdeu a visão aos 12 anos de idade e encontrou nos livros um novo universo. Com apoio da família e de pessoas próximas ele se adaptou, aprendeu braille, concluiu os estudos e, atualmente, repassa o conhecimento para outras pessoas com deficiência visual. Trabalhou durante 20 anos na biblioteca e o espaço ganhou um carinho na memória de Leonardo. ;Foi um trabalho que me trouxe satisfação. Da forma que eu fui acolhido e a importância que aquele espaço representa para as pessoas com deficiência visual. Com toda essa bagagem eu resolvi falar sobre a gratidão que eu tenho pela biblioteca;, relata.


Para além da capital federal, a iniciativa ganhou adeptos com representante de Santa Catarina. Michelle Belattu, 38, mora em Florianópolis e ficou sabendo do projeto através de uma publicação nas redes sociais. ;Vi o anúncio em um grupo no Facebook, achei interessante e decidi participar;, conta Michelle que tem baixa visão. Ela ficou surpresa por saber que a iniciativa era no Distrito Federal. ;Cheguei a mandar mensagem para saber se poderia participar. Fiquei muito feliz quando a resposta foi sim. A gente está vivendo coisa que antes não vivia, o ano de pandemia nos permitiu isso. Ampliar o acesso;, pontua.


Para o professor Antônio Leitão, 62, consultor do projeto, essa iniciativa tem um peso muito grande. ;Vai dar vez e voz para as pessoas com deficiência visual e que tem informação de qualidade para repassar. É uma oportunidade de revelar talentos, expor autores e dar a oportunidade de entrar no mercado literário;, afirma. Ele é cego de nascença e relata as dificuldades e preconceito que existem na sociedade. ;O projeto vai trazer à tona muitas questões sobre a visão de mundo e de alma. É um momento ímpar;, destaca.
A seleção contará com uma curadoria de escritores que vão escolher cerca de 50 textos para a coletânea que será publicada até o final do ano nas edições impressa e em ebook, de acordo com o idealizador do projeto, Andrey do Amaral. ;Temos trabalhos que dá para cinco livros. Quem sabe a gente não consegue fazer uma segunda edição, com outros textos;, avalia. A proposta é publicar mil exemplares impressos em tinta e disponibilizar a versão digital para download gratuito em livrarias e plataformas literárias.

Atenção

Seleção de textos de autores cegos e de baixa visão Informações: (61) 9 8457-7131mostradeliteratura@gmail.com

Fonte: Correio Braziliense